sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O restauro do móvel de Hector Fidelico (um conto)

O Sr. Hector Fidelico da Muralha morava na rua quinze do Bairro da Ruanda na cidade de Porto Feliz. Assíduo colecionador de móveis antigos, seu acervo era digno de um imperador do século XVI. Gastava mais dinheiro comprando móveis que comendo. Sofás, mesinhas de cabeceira, cadeiras suntuosas, maravilhosos armários, a casa cheirava a verniz de primeira. Naturalmente restaurava todos seus tesouros. A maioria de suas aquisições chegava bem avariada devido à idade. Hector era seu próprio restaurador, um exímio marceneiro, restaurava as peças uma a uma.

Num dia desses de calor, Fidelico estava à procura de novas aquisições para sua coleção. Entrou numa pequena e fedorenta lojinha de usados e perguntou por móveis antigos. O homem aparentava ter uns quarenta anos , mas sua expressão facial o envelhecia uns vinte. Com uma cara zombeteira e cordial ao mesmo tempo mostrou à Hector uma velha e mofada poltrona datada do ano de 1934, segundo ele. Disse que foi muito importante na época, e que aquela poltrona vinha do outro lado do mundo: um lado o qual as coisas era feitas com carinho, e para durar. Fidelico a comprou por um preço até acima da média. Gostara da poltrona, afinal.

Ao chegar em casa, todos os preparativos já estavam feitos. Hector possuía uma sala que transformou em seu estúdio, o lugar onde fazia sua arte. Calmamente trouxe a poltrona à sala de restauro e a depositou numa mesa grande onde também continha inúmeros instrumentos de restauração, verniz, e alguns sacos do mais fino algodão. Tinha o móvel restaurado imaginado em sua cabeça, logo se empenhou em torná-lo realidade. Com maestria fazia aberturas na poltrona, retirava o "recheio" velho e fedorento e trocava pelo novo e cheiroso algodão. Após terminar de restaurar o recheio, costurou os buracos por onde introduziu o algodão de forma que praticamente não se percebiam os traços da linha a olho nu. Passou então um spray perfumado por sobre toda a poltrona, fazendo-a cheirar como nunca.

Após horas de trabalho, finalmente estava pronta. Da forma que tinha imaginado, havia ficado sua poltrona. Colocou-a num lugar privilegiado: ao lado do vaso de plantas japonês, de frente para a televisão à cores. Feito isso, foi dormir.

Quando acordou, encontrou-se perturbado por um cheiro horrível de potridão que inundava a casa toda. O cheiro vinha da sala da poltrona recém-restaurada, e quando ele chegou lá notou que sua poltrona estava novamente no estado que havia chegado em casa, o que era um absurdo, pois ele havia acabado de restaurá-la. Era impossível. Ficou tão fissurado com o fato que nem tomou café-da-manhã: tratou de refazer seu trabalho misteriosamente desfeito. Obteve o mesmo resultado. O resto do seu dia correu normalmente. Foi se deitar. Demorou-se em adormecer pois durante a madrugada, guinchos estranhos vindos da sala da poltrona o perturbavam. O sono venceu. Conseguiu dormir, afinal, sem ir checar os ruídos.

Acordou cedo, ou melhor, foi acordado involuntariamente por aquele cheiro insuportável, e pelos murmúrios perturbadores. Quando foi se aproximando da sala da poltrona, os murmúrios cessaram, e lá estava ela, destroçada, mofada e carcumida outra vez. E lá foi ele em sua cruzada interminável da linha e da agulha, do couro e do algodão, em busca do assento perfeito.

Terminado seu trabalho, Hector passou o dia inteiro vigiando a poltrona até não aguentar mais e precisar dormir. Teve um breve sono, até mais ou menos duas e meia daquela noite. Desperto pelos guinchos que agora haviam se tornado urros horrendos, e pelo cheiro que agora era muito pior, não se aguentou e foi correndo ver o que ocorria. E lá se encontrava, para sua surpresa, uma criatura estranha e ameaçadora, que lembrava muito sua poltrona, em estado de decomposição. O monstro possuía uma larga bocarra, cheia de presas pontiagudas e molas pendentes de sua "garganta." No lugar onde deveriam ficar os olhos, destacavam-se dois grandes botões de seda, que se moviam de uma maneira peculiar, como que seguindo a figura de Fidelico. Mais uma vez a criatura urrou, no que agora mais parecia um grito de guerra contra seu dono. Hector tentou gritar por ajuda. Em vão. Cuidadosamente ele havia isolado a casa inteira para que não emitisse nenhum som para o exterior, e assim, não perturbasse a vizinhança.
Morte estranha. A poltrona o engoliu.

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